Natural de Jacobina, Vanessa Reis é pessoa em cadeira de rodas e sentia falta de personagens com deficiência nas histórias que lia
Como leitora, desde muito jovem, a escritora Vanessa Reis tinha um incômodo: a ausência de personagens com deficiência nas histórias que lia. “Era o que eu sempre gostaria de ter lido. A gente é sempre condicionada a adaptar uma história para se imaginar. Mas eu queria que pessoas que se parecessem comigo pudessem ler e se imaginar sem precisar adaptar”, diz ela, que é uma pessoa com deficiência (PCD) e usa cadeira de rodas desde 2015.
Foi esse um dos pontos de partida para criar Catarina, a protagonista de Interseção, seu primeiro livro. Nascida em Jacobina, no Centro-Norte baiano, Vanessa criou um romance com uma heroína PCD em que duas pessoas muito diferentes tentam encontrar algo em comum. A obra será lançada no dia 22 e já está em pré-venda.
Interseção tinha sido inicialmente disponibilizado de forma independente há dois anos, na Amazon, onde chegou a ter mais de 11 mil downloads. Agora, terá o relançamento pela editora Verus, selo do Grupo Editorial Record destinado a romances. No próximo dia 30, Vanessa estará na Bienal do Livro da Bahia, participando da mesa “As histórias de amor que precisamos hoje contar”, que terá, ainda, a participação dos escritores Pedro Rhuas e Abdi Nazemian.
Na trama, Catarina é uma servidora pública que precisa trabalhar com um colega que considera implicante. Eles são forçados a trabalhar juntos no melhor estilo ‘enemies to lovers’ (inimigos a amantes, na tradução livre de uma expressão comum nas comunidades digitais literárias). Para a autora, porém, a história do casal está mais para um ‘implicantes a amantes’.
Sempre que descreve Catarina, Vanessa destaca dois aspectos: a mocinha é alguém que odeia admitir que está errada e que tem aversão a homens com nomes bíblicos. Além disso, a personagem é uma pessoa em cadeira de rodas. Desde o início da publicação independente, Vanessa já recebia mensagens de meninas que diziam ‘ser Catarina’. Percebeu, assim, que era uma carência não só dela, mas de várias pessoas.
“Em uma resenha que li, a pessoa dizia que Interseção faz jus ao meme da gay trambiqueira empinando moto”, brinca Vanessa, referindo-se a um famoso meme dos últimos anos. Na postagem viral, o print de um usuário do Facebook dizia que ‘ninguém aguenta mais história de gay sofrendo. Queremos mais gays assim, gays empinando moto, gay dando tiro, etc’. Para Vanessa, isso reforça a necessidade de que as pessoas vejam as personagens com deficiência mas que não as reduzam a isso. “Catarina vem dessa necessidade, mas é uma pessoa como qualquer outra”, enfatiza.
Social
Assistente social e servidora pública, Vanessa trabalha na prefeitura de sua cidade diretamente com os programas de habitação, como o Minha Casa, Minha Vida. Ela costuma dizer que é servidora até 14h. Depois, fica livre para contar histórias e criar universos.
A experiência como funcionária pública foi importante para ambientar a história. Vanessa via muitas comédias românticas gringas em escritório, mas pensava que a realidade brasileira tem muito da vida em repartições públicas.
Assim, decidiu emprestar um pouco de sua própria realidade a Catarina, que é uma cientista social e também trabalha com programas sociais. “Escuto muito que Catarina é a chata que as pessoas amam. Não quero personagens que sejam boazinhas. Amo ouvir que ela é chata, cabeça dura, teimosa. Graças a Deus ela é isso, porque ela é uma pessoa”, pondera.
O outro lado do casal, o mocinho JPS, é administrador e trabalha no mesmo setor. “Tento brincar com a ideia de que servidor público não trabalha, de que cargo comissionado está ali só para esquentar cadeira”, conta.
Filha única até os 14 anos, Vanessa cresceu rodeada de livros e sempre viu a escrita como diversão. Na adolescência, escrevia crônicas curtas e publicava em blogs e no Tumblr, uma plataforma para textos que foi febre no início da década de 2010. Por anos, Vanessa ainda escreveu resenhas de séries e filmes para um site, mas vivia dizendo que não sabia fazer uma história de ficção com começo, meio e fim.
“Comecei a dizer que não conseguia e, para provar que não conseguia, acabei escrevendo”, diz ela, que tem Clarice Lispector e Guimarães Rosa como duas referências na literatura.
Interseção começou a nascer no final de 2019 e foi concluído um ano depois, no fim de 2020. A pandemia e a nova rotina imposta na época contribuiu para isso. O plano inicial era lançar em 2021, mas ela adiou depois que a ilustradora contratada para a capa adoeceu. Vanessa esperou que a artista estivesse de volta o lan çamento independente aconteceu em 2022.
Vanessa tem uma deficiência congênita chamada de osteogênese imperfeita – conhecida também como ossos de vidro, devido ao quadro de fragilidade óssea. No caso dela, os sinais não apareceram no nascimento, mas surgiram à medida que crescia.
“Minha mãe sabia que tinha alguma coisa errada, mas as pessoas diziam por um tempo que eu era uma criança preguiçosa para andar. Quando eu tinha 14 anos, meu irmão nasceu com um quadro mais grave, com todos os sinais claros. Os médicos, então, falaram que talvez eu também tivesse. Quando tive o diagnóstico, comecei o tratamento correto”, conta Vanessa.
Em 2015, depois de sentir o quadril travar, ela não conseguia mais ficar de pé, usar muletas ou andador. Foi quando começou a usar a cadeira de rodas. Vanessa faz acompanhamento no Hospital Universitário da Universidade Federal da Bahia (Hupes/Ufba), e, por isso, viaja com regularidade para Salvador. Hoje, ela tem quadro estável.
Na Bienal, porém, irá pela primeira vez. Quando recebeu o primeiro contato da Verus pelo livro, Vanessa chegou a achar que era trote. Uma das coisas que ambas as partes quiseram manter foi o estilo de falar dos personagens, que remonta ao sotaque baiano da região. “As coisas estão mudando, mas ainda é difícil ver uma publicação com personagens PCD em grandes editoras. Ainda é difícil ver PCDs como protagonistas de histórias de amor”, pontua.
Fonte: Correio 24 Horas